Milagre

"Olhar a orquídea é ter tempo para a vida, e reconhecer nela o milagre que nos permite caminhar todos os dias", Quaresma..

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Descobrindo Machado em Hatoum

De um recorde de leitura pessoal, vi o mestre de outros tempos no mestre de hoje. Talvez, mais tarde, me arrependa ou apenas reformule conceitos. Mais tarde talvez...


Meus olhos ardem quando estou de frente para o computador, e isso não é de hoje. Estão cada vez mais cansados. Minha costa dói em qualquer posição que estiver: sentado, deitado, em pé, andando ou parado. Isso me perturba tanto quanto alguma sensação de improdutividade que paira sobre meu trabalho, em tempos de muita atividade de pouco prazo, e ausência de braços outros de apoio na execução das tarefas. Um paradoxo quase insolúvel.
     Não fosse o incomodo verdadeiro das doenças ocupacionais poderia ter começado esta prosa a partir do segundo parágrafo que em outro caso seria o primeiro, sem esta longa oração que finda por hora nesta palavra. Iniciaria dizendo: Neste instante, uma sensação de felicidade recai sobre mim nesta manhã de negro céu que anuncia uma furiosa chuva. Impressão que nasceu desde cedo, e cresceu já no balcão do trabalho, ao olhar para a minha direita, e pousar o olhar sobre algo que por ali foi depositado pelas minhas próprias mãos.
     Sobre a mesa de trabalho vi um vermelho forte de uma poltrona de couro. Sobre ela, capas de DVDs, livros e uma foto preto e branco. Ao fundo, um negrume fosco que dá um ar de tranquilidade ao ambiente noturno. Na parte superior um iluminado sereno de um abajur que chama atenção para o nome do crítico de cinema e escritor canadense David Gilmour. É a capa do seu livro ‘O Clube do Filme – Um pai. Um filho. Três filmes por semana’.
     Ar de feliz por quê? Afirmo com quantas letras forem necessárias, porque é o quarto livro que leio depois das aprendizagens e dos destemperos do processo eleitoral de 2010. Não só por isso, mas porque também representa algo além da minha média anual de leitura, desde quando decidi gostar de leituras, sobretudo, das de romances (não quero dizer aqui simplesmente de amores), contos e poemas. E isso data lá dos meus 19 anos. Antes, lia por alguma obrigação da escola. Hoje, alcanço um recorde pessoal que tem me aliviado de alguns muitos estresses das últimas semanas. Mais ainda porque reacende outros projetos pessoais, os quais os retomarei logo, com uma visão mais madura e treinada (apesar de cansada por conta do computador).
     Não quero aqui produzir resenhas dos livros que li, até porque não tenho prática nessa arte de resenhar obras dos outros, nem as minhas poucas em particular. Pretendo nessas linhas apenas aliviar os anseios de um pobre jardineiro das letras, um aprendiz.

     Antes da obra de Gilmour, tive o prazer de cumprir uma façanha jamais vista nos últimos 27 anos de vida (nem quando tentei arrumar fôlego aos 21 para ler o máximo das obras machadianas). Posso assim dizer, que comecei pelo começo das obras de Milton Hatoum. Os primeiros passos dessa saga se deram de forma meio confusa com ‘Relato de um certo Oriente’. A leitura dessa obra teve início ainda durante a campanha eleitoral, em dias de cansaço, meio sonolento. Parei. Não tive condições de continuar. Após a ressaca eleitoral do primeiro turno reiniciei a leitura querendo de fato entender quem dizia o que naquela obra. Livre de preocupações outras foi mais fácil entender o que o autor e suas personagens queriam dizer.
     Após ‘Relato de um certo Oriente’, continuei com Hatoum, dessa vez com ‘Cinzas do Norte’. Havia pelo menos cem páginas a mais que a obra anterior. Com mais cuidado, comecei pelas orelhas do livro, com as quais não quis perder tempo com o ‘Relato...’. Me dei conta de que tinha começado pelo começo e que com ‘Cinzas...’ tinha dado um salto para a terceira obra do amazonense. Senti-me mais ávido por sua produção literária, e após ‘Cinzas do Norte’, regressei na cronologia de sua biografia. Fiz questão que a minha terceira leitura fosse ‘Dois Irmãos’, sendo essa a segunda obra do premiado filho de imigrantes libaneses.


     Incrível como algumas coincidências são evidenciadas quando menos esperamos, na arte e na vida, ou melhor, entre a ficção e a vida real. As três obras tratam de dramas familiares na Manaus das antigas, e como uma crítica sutil aos amazonenses de hoje, não deixa de contar na sua ficção a parte feia da nossa história. Uma evolução regressiva numa cidade que prometia (e hoje ainda promete), e por isso se comprometia com a explosão demográfica.
     Hatoum faz da sua origem familiar, dos imigrantes, as páginas das suas primeiras invenções literárias, alcançando tramas e dramas que não fogem muito das do cotidiano da Manaus de hoje. Depois, com ‘Cinzas do Norte’, sem deixar de citar algum imigrante (ainda que não como tema principal, desta vez um português), o escritor retoma o drama familiar, acercado de algumas revoltas em pleno regime militar. E como nos contos anteriores, mesmo tendo sua obra ambientada em Manaus, nos leva a alguns passeios fora daqui. Desta vez é possível visualizar um Rio de Janeiro antigo, mas já muito mais rico que a nossa cidade. Ousa ainda em nos levar por ruas de cidades da Alemanha e de Londres. Em ‘Dois Irmãos’ as caminhadas são por uma São Paulo em pleno desenvolvimento.
    
     Da riqueza a pobreza das famílias, suas constantes transições e as transformações grosseiras do tempo, Hatoum com a sua obra nos deixa muitos ensinamentos, com uma leitura envolvente, mais acessível aos nossos dias, e tão rica quanto às de Machado de Assis (21 de junho de 1839 a 29 de setembro de 1908). Acredito até que a invenção literária do nosso Milton Hatoum possa ser considerada como uma tradução para os nossos tempos, com cenários nossos, das obras de mestre Machado.
     Exagero meu? Talvez. Certo é que Machado e Hatoum são hoje os maiores nomes da literatura brasileira. Machado do seu tempo até os dias de hoje, e ambos daqui para as futuras gerações, que espero não se deixarem levar pela epidemia da parafernália tecnológica, e que por isso não esquecerão o bom exercício para a vida que é uma boa leitura, de um bom livro.


Emerson Quaresma

Um comentário:

  1. Muito Bom artigo, meu caro Emerson. Se você acompanhar algumas entrevistas do Hatoum verá que ele mesmo admite a influência da obra de Machado em sua produção literária. Durante a infância e juventude ele leu muito Machado e diz que tais leituras foram fundamentais para a sua formação enquanto escritor. Tanto que o próprio autor admite que "Dois Irmãos" é uma releitura de "Esaú e Jacó", de Machado de Assis. Então suas conclusões, na verdade, já foram várias vezes relatadas não só em entrevistas com o próprio Milton, mas também em vários trabalhos científicos cujas obras do autor foram objeto de investigação. Vale a pena conferir.

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